quarta-feira, julho 19, 2006

Nota Introdutória ao Espectáculo

[...] Cervantes parece encarar muito seriamente, e também muito ironicamente, tanto o jogo do mundo como o contrajogo de Dom Quixote e Sancho Pança. O cervantino é tão multivalente quanto o shakespeareano: ele contém-nos a nós, com todas as nossas profundas diferenças uns dos outros. A sabedoria é tanto um atributo do Dom Quixote como de Sancho, sobretudo quando considerados em conjunto, tal como a inteligência e a mestria da linguagem são qualidades de Sir John Falstaff, Hamlet e Rosalind. Os dois heróis de Cervantes são simplesmente as personagens literárias mais amplas de todo o Cânone Ocidental, excepção feita aquela tripla mão-cheia (no máximo) dos seus pares shakespeareanos. A fusão que eles operam do ridículo, da sabedoria e da indiferença quanto à ideologia só consegue ser igualada pelos mais memoráveis homens e mulheres de Shakespeare. Cervantes naturalizou-nos tal como Shakespeare o fez, de tal maneira que já não conseguimos descortinar o que é que torna “Dom Quixote” tão permanentemente original, uma obra tão penetrantemente estranha. Se o jogo do mundo ainda pode ser situado na maior literatura, então é aqui que ele tem de estar.

Harold Bloom, [Cervantes: O Jogo do Mundo]
O Cânone Ocidental, trad. de Manuel Frias Martins, Lisboa:Temas e Debates, 1997)




1. A Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, de António José da Silva, é um dos textos escolhidos para ser representado no âmbito do último semestre do segundo ano do curso de Formação de Actores da ESTC, cujo tema é Teatros do Barroco.

A peça do Judeu, foi inspirada na Segunda Parte da obra de Cervantes, que introduziu o mito tão popular das duas personagens – heróis, que todos conhecem e sobre os quais todos têm uma ideia, sem precisar mesmo de ter lido a obra. São amplamente conhecidos alguns episódios e, sobretudo, esta ideia do par mítico, de cavaleiro e escudeiro, que viajam num território pejado de encontros e missões, fome e fartura, riso e sacrifício, bem como de música, filosofia, justiça e, principalmente, finais adiados. Esses, onde sempre nos arriscamos ao despontar da dúvida na nossa forma de ver as coisas e as pessoas. No livro de Cervantes, como na rota de Russo, Rocinante e respectivos montadores, está sempre presente o caminho fino, fininho, que separa as coisas como elas são, das coisas como elas por vezes nos parecem. Ou não fosse O Sábio um dos cognomes do autor espanhol.


2. Sanchos e Quixotes.
Com este trabalho procurámos dar resposta a uma matriz de objectivos pedagógicos respeitantes à formação de uma turma de alunos–actores. Através da construção e apresentação de um exercício–espectáculo, pretende-se promover a aquisição e a consolidação técnica do actor, levá-lo a fazer uma abordagem prática a um texto importante da dramaturgia portuguesa de modo a que possa perceber a poética subjacente e o seu alcance cultural, e confrontar o aluno com uma metodologia particular de trabalho.

Num primeiro período de ensaios, em paralelo com o estudo da peça em si, partimos para um conjunto de improvisações teatrais feitas na aula, incidindo sobre a identidade das personagens Sancho Pança e Dom Quixote, de modo a explorar estas e a desenvolver algumas possibilidades para a sua criação. Ficou estabelecido que cada actor representaria ou Quixote ou Sancho. A partir deste trabalho inicial, a distribuição das personagens foi feita numa base de cumplicidade com as escolhas de cada aluno que procurámos questionar e provocar, enquadrando estas com as contingências práticas do trabalho e procurando explorar a noção que o actor possui da sua própria formação.

Também neste primeiro momento, começou a materialização das personagens uma vez que, após a sua selecção, foi proposto que cada Sancho e Quixote, isto é, que cada actor e actriz, procurasse armar e vestir o seu cavaleiro ou preparar a mala do seu escudeiro.

Com a bagagem material e intuitiva obtida, arriscámos colocar estas personagens (em desenvolvimento) em jogo nas situações da peça. Procurámos assim, num processo de aproximação progressiva, compreender na prática as cenas e encontrar e fixar gradualmente a sua forma.
Após estabelecidas as bases para a identificação do actor com o texto e com a sua concepção dramatúrgica (que ele próprio ajudou a determinar), procurámos a identidade das cenas. Procurando para cada uma a sua medida particular, a sua forma, espaço, sonoridade, ritmo, poética para passar do geral ao particular. Da percepção dramatúrgica para a concretização da dramaturgia na cena, para a comunicação do texto, das personagens e para a ampliação do seu sentido através da encenação (ou orquestração). Da ideia de personagem para o acto da representação. Do texto para a linguagem.

E finalmente, nos últimos ensaios, procurar a transparência e a transcendência necessárias à consolidação do discurso de cada actor e à orquestração geral do espectáculo. Isto é, trabalhar a afinação e o respeito pela “partitura” teatral como a via de acesso ao momento desejável em que a obra que se ensaiou tem a capacidade para nos ultrapassar, e deixar de ser nossa.


3. O texto representado difere do original nalguns cortes operados para conter a sua extensão. Na primeira parte estes são pontuais e na segunda um pouco mais extensos, sendo a cena 1 abreviada e a cena 5 reduzida a um mote.

Mantiveram-se a maior parte das canções. Sabendo que desta ópera não ficou nem uma partitura para a posteridade, as canções, com uma excepção, são adaptações das partituras oriundas de As Variedades de Proteu (1737), ópera em três actos de A.J.S. com música de António Teixeira, o seu habitual compositor. O trabalho musical sobre os coros falados presentes no texto e restantes momentos musicais foram propositadamente compostos para este espectáculo. Este notável trabalho, de composição, adaptação e adequação musical, bem como o seu ensaio com os actores, é da autoria da Profª. Sara Belo, professora da disciplina de Voz.


4. Uma Viagem é um solo fértil. Há quem diga que três pessoas é o número ideal de viajantes em qualquer jornada. Talvez que pela solidão da unidade se diga isto. Viajar a dois, por outro lado, expõe ao desgaste, à crise. Expostos a uma convivência contínua, na coexistência diária com um outro, sempre nossa testemunha, necessariamente diferente, crítico.

Porém é no confronto com o outro que nos revelamos e nos descobrimos a nós próprios. Que nos podemos tornar mais sábios colhendo os frutos que o conhecimento de outras possibilidades para além das nossas, pode trazer. É quando as nossas ideias e convicções são postas em causa frontalmente que podem começar a evoluir. Só em par podemos estar frente a frente com outro. Não há Sancho sem Quixote, nem Quixote sem Sancho.

Fazer travessias a dois é o melhor que há, mesmo por entre ventos e tempestades. Agradeço a todos os meus alunos mais esta oportunidade. Para todos nós, votos de que sempre encontremos um par que nos possa dizer, embarca-te Sancho, que hás-de achar uma ilha.


Lisboa, 24 de Junho de 2006
Pedro Matos

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