quarta-feira, julho 19, 2006

O Teatro como Quixote da Memória

Revisitar um texto de António José da Silva neste espaço chamado de Teatro da Politécnica desperta-me desde logo uma ressonância simbólica em termos de memória teatral relativa às últimas décadas do século XX. De facto, a designação Teatro da Politécnica surgiu em 1989 para denominar uma efémera mas significativa estrutura teatral lisboeta (1989-1992), dirigida pelo encenador Mário Feliciano (1951-1995), que ocupava então um espaço do Museu de História Natural da Escola Politécnica, diferente daquele que hoje se dá pelo mesmo nome. Se bem que esse primeiro Teatro da Politécnica se tenha estreado aqui com um espectáculo consagrado a um outro António dramaturgo e português mais recente (D. João e a Máscara, de António Patrício), a memória que desejo sublinhar hoje é o facto de ter sido o fundador do Teatro da Politécnica o primeiro encenador português (e até agora penso que único) a internacionalizar a obra de António José Silva nos palcos e língua italianos; ou seja no país cuja cultura teatral exerceu um ascendente assinalável sobre as óperas joco-sérias do malogrado autor luso-brasileiro. É em 1980 que Mário Feliciano, no contexto da Bienal de Veneza e após um período de discipulado junto de Luca Ronconi, encena com actores italianos as Guerras de Alecrim e Mangerona, de António José da Silva, que ele traduz para a língua de Goldoni com a colaboração da lusitanista Luciana Stegagno Picchio.

Um quarto de século depois, num espaço cénico que herdou o nome da companhia de Feliciano, é a vez de assistirmos à Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, num contexto de colaboração feliz entre duas casas filhas de Garrett: o Departamento de Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema e o Teatro Nacional D. Maria II. Metade das turmas de alunos do 2º ano de todos os cursos de Teatro da ESTC (a outra metade está na Sala-estúdio do TNDM com Qorpo Santo) contribuem para a realização deste exercício-espectáculo dirigido pelo docente de Interpretação Pedro Matos. Sob a temática curricular do Barroco no teatro, impunha-se o confronto com a dramaturgia silviana, a mais brilhante e paradigmática de um Barroco português, tardio, satírico, e ameaçado de morte. Porque por mais que o exorcizemos, não é possível minorar o quanto o destino funesto do indivíduo António José da Silva se cola à sua obra truncada, como símbolo histórico de atentado à liberdade criativa, à expressão artística publicamente dirigida à vida da pólis; em suma, é um assassinato cuja sombra acompanhará sempre todo o autor dramático português, como exemplarmente o exprimiu em teatro Bernardo Santareno n' O Judeu (1966).

Algumas palavras sobre a peça em si aqui resgato a seguir, de uma conferência que sobre ela proferi em Évora, em 1993 (As Metamorfoses no Espaço Imaginário).
O par formado por Quixote e Sancho antecipa, tutelar, no que de patético e existencial contém, outras parelhas masculinas mutuamente dependentes, como sejam: Laurel & Hardy, no cinema; o palhaço pobre e o palhaço rico, no circo; e os vagabundos beckettianos Vladimir e Estragon.

D. Quixote quer ser salvador do mundo; Sancho o salvador da sua pele. Quixote em demanda de Dulcineia mostra andar em busca de si mesmo, de uma razão mobilizadora da sua existência que se encontraria ilusoriamente fora de si; ou seja, ele procura trazer à luz a sua interioridade inconsciente a que a Psicologia Analítica chama de anima, projectando-a numa mulher hipotética, cujas supostas metamorfoses enganadoras podem surgir sob a forma de uma saloia, de um espantalho falante, ou até do próprio Sancho, que se vê incomodamente confundido pelo seu amo (uma paródia de género que nunca ocorreu a Cervantes, pelo menos textualmente falando).

Como muitos o afirmaram já, Quixote personifica comicamente o lugar do espírito, com os seus fabulosos anseios alimentados por uma subjectividade incomunicável, enquanto Pança assume, logo pelo seu corpo inscrito no nome, a figuração da matéria orgânica, ou pelo menos os instintos que a esta associamos. De um modo ou de outro, a dialéctica que ambos encenam exprime uma dualidade intrínseca ao humano. Não cabe a Sancho, ainda assim, o privilégio do cómico, porque as audácias sonhadas pelo espírito participam intensamente do bathos paródico, em virtude do desfasamento vivencial a que conduzem o indivíduo por elas aguilhoado, abrindo um fosso que o separa dos demais, no qual nem a linguagem pode fornecer uma resposta expressiva e duradoura a essa solidão essencial. Daí a justeza da máxima de Teixeira de Pascoaes: «Um cavaleiro é sempre um Dom Quixote, uma paródia do Espírito.» (1) E é no espaço imaginário que encontramos esse intrépido cavaleiro, sempre insatisfeito com os pedregosos desfiladeiros da vida material, de tal sorte que confunde os cíclicos moinhos dela com inimigos valorosos.

Os episódios da saga quixotesca, que foram rescritos em drama por António José da Silva, são quase exclusivamente oriundos da segunda parte da narrativa de Cervantes. Sem intenção de empreender um exaustivo estudo comparativo, há elementos curiosos que se destacam, mesmo numa breve leitura, que relevam da criação original do dramaturgo português. Um deles é a identificação da ilha governada insensatamente por Sancho, chamada por Cervantes de ilha Barataria. António José da Silva designa-a e recria-a como ilha dos Lagartos (rebaptizada neste exercício como ilha dos Sotaques). Trata-se provavelmente de uma sátira ao estatuto pessoal e social de Sancho, que só lhe permitirá concretizar os seus devaneios de grandeza sobre os mais rasteiros seres da terra, isto é, aqueles que se movem rastejando no solo.

Um outro aspecto assinalável reside na metamorfose de funções que a personagem do bacharel Sansão Carrasco sofre na peça silviana. Este surge na ficção cervantina como um ilustrado interlocutor ocasional de Quixote, que informa o cavaleiro acerca dos feitos famosos atribuídos à sua pessoa e que correm o mundo na letra impressa dos cronistas, prometendo Sansão compor, a pedido de Quixote, um acróstico com o nome de Dulcineia del Toboso (capítulos III e IV da segunda parte do texto de Cervantes). José da Silva, por seu turno, transforma a personagem, concedendo-lhe o papel de antagonista, ao serviço da Ama e da Sobrinha, com várias aparições ao longo da peça, com o fito de dissuadir Quixote da sua delirante empresa. Como se o dramaturgo ampliasse a importância desta personagem a partir da sugestão semântica do seu nome: Sansão é aquele cuja força é roubada por uma mulher, ficando então o bíblico herói de cabeça rapada à mercê de Dalila; já Carrasco é sinónimo de algoz, executor de torturas e penas capitais. A personagem criada por Cervantes adquire na peça silviana uma correspondência entre o seu nome e as suas acções: ao orientar as suas forças sob as ordens da Ama e da Sobrinha, este Sansão é o carrasco dos sonhos andantes de Quixote.

Sintomática será também a escolha silviana no que respeita à fantasiosa batalha com os moinhos, levada a cabo pelo herói da triste figura. Na peça, não são os emblemáticos moinhos de vento, mas sim os moinhos de água que, aos olhos de Quixote, aparecem como um castelo onde um inocente é mantido prisioneiro. Esta peripécia vai o dramaturgo buscar ao capítulo XXIX, igualmente pertença da segunda parte do texto de Cervantes: Da famosa aventura do barco encantado.

A imagem de um D. Quixote, embarcado e libertador, acometendo contra as rodas de uma azenha, ante os gritos dos moleiros armados de varapaus, preferiu-a José da Silva nesta sua ópera titereira (episódio que aparece cenicamente citado no presente exercício). Se terá sido ou não motivado a isso pela marítima vocação lusíada, certo é que um D. Quixote navegante em busca de novas façanhas é uma cena cómico-marítima bastante adaptada ao imaginário da assistência a que se endereçava o espectáculo. Permito-me especular que estivesse presente para o autor - ele próprio andarilho e foragido dos mares, provindo do Brasil em criança - essa suspeição face ao rosto deveras quixotesco da epopeia oceânica, empreendida pelos portugueses, conforme comenta Eduardo Lourenço, «(...) por nos termos literalmente fundido, em espaços, sonhos maiores do que nós, espaços ou sonhos descentrados do seu sujeito criador». E conclui Lourenço: «Dos dois países, outrora rivais, o mais quixotesco não é aquele que é o berço do Herói, mas o nosso.» (2)

Através desta sua comédia, enxertada da obra cervantina, António José da Silva acabou por enunciar essa convicção, pela metamorfose operada em Quixote, pondo-o a falar no palco a língua portuguesa.

Armando Nascimento Rosa



Notas bibliográficas

(1) PASCOAES, Teixeira de, São Jerónimo e a Trovoada. Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 57
(2) LOURENÇO, Eduardo, Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988, p. 84.

Powered by Blogger