quarta-feira, julho 19, 2006

Sonho de Sancho, Sanha de Quixote

Sancho:
(…) Se vossa mercê vira aqueles olhos, que pareciam olhos de couve murciana! O nariz, isso era cair um homem de cu sobre ele; tinha umas mãos de rabo; o corpo parecia corpo de delito, pelo que matava a todos; os cabelos não vi eu, só o que eu vi foram dous piolhos de rabo, que lhes saíam pelos buracos da coifa. (…)
António José da Silva, in Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança



Bebendo da fonte narrativa de Cervantes, António José da Silva, com uma linguagem popular mas alegórica, barrocamente sofisticada, apresenta-nos uma peça com carácter transgressor. E a sátira inicia-se com um rosto joco-sério num corpo alegórico de uma mulher inexistente; um drama social onde entre a ficção e a realidade a fronteira é ténue. A vida do gordo Sancho Pança é toda ela satirizada, tal como é a vida dos simples mortais, que rastejam na terra, em busca de um sonho impossível (?).

A vida do D. Quixote é uma sanha cavaleiresca, cheia de contrastes; entre aventuras e audácias nas quais tenta ser o salvador do mundo. Uma peça cheia de metáforas, onde se desencadeiam múltiplas acções que se unem como num fio-de-prumo. Um enredo forte, uma rede frágil de acontecimentos, revestidos de idealismo altruísta.

Em Sancho Pança o riso esconde a malícia. Neste jogo paródico encontramos uma comédia séria, onde há personagens mais significativas do que outras. Mas é evidente em todo o enredo essa espécie de paridade funcional.

Como o comenta Armando Nascimento Rosa, no seu ensaio, sobre esta peça, As Metamorfoses no Espaço Imaginário: «nesta operática comédia, o papel desempenhado pelo duplo tem uma importância fundamental e podemos encontrar várias parelhas de personagens, mais ou menos significativas para o decurso da acção; para além da dupla protagonista formada por Quixote e Sancho, temos: Ama/Sobrinha; Barbeiro/Sansão Carrasco; Teresa Pança/Filha; Saloia/Dulcineia; Sansão/Criado; Homem/Leão; Montesinos/Belerma; Sancho Dulcineia; Apolo/Calíope; Fidalgo/Fidalga; Dulcineia/Merlim; Meirinho/Escrivão; Médico/Cirurgião; Sansão/Quixote, etc (...) Nos pares Saloia/Dulcineia e Sancho Dulcineia».

Quanto à parelha nuclear, Sancho Pança «participa a contragosto no universo de interesses de Quixote, já que só se decide a acompanhá-lo, por alimentar a esperança de um dia vir a ser governador da sua desejada ilha» (A. N. Rosa, 1993). Qual líder improvisado, Sancho aproveita a sua centralidade e coloca questões críticas, aos que o rodeiam, relativas ao mundo profissional, dizendo respeito ao sentido de equidade nas relações sociais. Verificamos isso na cena do testamento de Sancho no 1º acto e na cena da “ Ilha dos Lagartos” (renomeada aqui por ilha dos Sotaques) no segundo acto.

Ainda citando Armando Nascimento Rosa, «não fosse o objectivo de Sancho [em atingir a ilha onde governará], sempre lembrado por D. Quixote, e Sancho nunca sairia de casa para a incerteza ameaçadora de aventuras imprevisíveis. Se Quixote é um cavaleiro andante, Pança é um escudeiro relutante (...)».

Vamos assistir à queda divertida deste objectivo, já que Sancho não possui características para uma bem sucedida liderança. E aí somos interpelados para uma leitura mais profunda dos mecanismos do poder. Dos que se arrastam na terra, tentando alcançar o tal sonho impossível (?), e dos que ascendem meteoricamente, e uma vez detentores desse mesmo poder manipulam toda uma sociedade, que, inerte, assiste ao espectáculo da decadência de valores: ora sorrindo, ora reclamando, ora conformando-se.

Uma saga satírica, que retrata o quotidiano de vidas. Esta vida fictícia que só a arte de representar pode tornar bem mais real. Porque o palco, como o escreveu Oscar Wilde, apesar de ser um mundo imaginário, pode tornar a arte mais real do que a vida.

Animados por uma ambição, por vezes ambicionamos algo mais do que aquilo que podemos alcançar e é aí que o drama acontece.

Num paralelismo com figuras do imaginário popular angolano, D. Quixote personifica o lugar de «N´zumbi» forte, com os seus amuletos estranhos, sacia um desejo incomunicável. Já Sancho Pança é a emanação de uma matéria, ou «N´guzu» frágil, dos que querem mas não podem ir mais além; uma marioneta da própria vida.

António José da Silva mistura o burlesco da sátira com as canções de ópera jocosa, e voos de fantasia «surreal», transportando-nos para uma dramatização espirituosa da famosa história de Cervantes. Entre o Judeu e Cervantes há um denominador comum: ambos fazem uma análise profunda dos heróis do nosso mundo, onde vivemos tão abstractamente os valores éticos, dissimulando-os através de um teatro de bonifrates.

Isabel Vicente

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